sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Até onde podem ir o corpo e a arte?


Brilham olhos, correm pernas, voam pipocas. A lona se abre e centenas adentram-na numa velocidade quase infantil. Crianças, adultos, idosos. Quem não quer ver? O picadeiro é para todos que guardam um carrinho de rolimã ou uma boneca de pano na memória. Mas não há brinquedos assim, lá a brinquedoteca é viva. E nada de saudosismo, é tudo novo. Tecnologia afiada nos corpos e na arte. Aliás, você sabe até onde podem ir o corpo e a arte?

É lua cheia na noite de nuvens, ao menos sob a lona. Projeções reais sim. Vá dizer que não são? Por baixo dela, há, ainda, uma platéia recheada de expectativa. Um palco em círculo com duas cadeiras prateadas, um abajur, uma mesinha e uma gaiola com um globo vermelho luminoso dentro. Há também uma porta no canto, atrás. Um cenário de solidão posto diante de um coletivo de inquietação. Olhe ali! Estão surgindo personagens daquela magia entre a platéia. Sem alardes ou fogos de artifício, mas brandamente, o espetáculo se inicia. Sem que ninguém se dê conta: “Psiu! Já começou”. Preste atenção. Talvez você comece a entender até onde podem ir o corpo e a arte.

Uma garota se sente só mesmo com os pais ao lado. Sua mente cria figuras fantásticas que entram na sua vida sem hesitar. Quem as convidou? Sua imaginação. E esta confabula com as artes circenses pelo resto daquela noite iluminada. Sorrateiramente, um homem é retirado do público e torna-se mais um membro cênico. Uma oportunidade única de sair da recepção para a emissão da magia. Logo depois, meninas com biotipos orientais demonstram quão disciplinadas são ao brincar com diabolos como quem maneja ioiôs. Sem nariz vermelho, o palhaço da trupe aparece e com suas artimanhas arranca risos frouxos da garotinha ainda sem dentes e do marmanjo durão sentados lado a lado. O humor é unanimidade. Mas ainda não há pistas sobre a até onde podem ir o corpo e a arte.

Mergulham no ar tecidos vermelhos que povoam a cena numa agilidade desconcertante. A menina que pula corda em casa com a irmã fica baratinada com as dezenas de pessoas saltando dois, três, quatro cordões de vez. Bambolês viram anéis num dedo daqueles finos que deixam folga para peripécias manuais. Um casal encaixa seus corpos um no outro, outro no um, causando temores quanto uma possibilidade de queda deles em pleno palco – ingenuidade, isso parece nem chegar perto de acontecer. Equilíbrio, concentração ou força? Talvez tudo junto. Um solo de contorcionismo deixa arredondada uma coluna que deveria ser vertical. De volta, o palhaço quer rodar um filme. Atrapalhado, astuto, espirituoso, ele é tudo isso… mudo. Um salto do segundo andar de uma torre humana, arremesa um homem ao quarto pavimento de outra torre – e ele tinha pernas tão normais quanto as minhas ou as suas, leitor. Cadê a lei da gravidade, sumiu? E corpo e a arte, afinal, até onde podem ir?


Não há uma única palavra dita, só cantada. Alguns gritos onomatopéicos são entoados, mas eles se encaixam em nenhum e em qualquer idioma. O espetáculo é compreendido mesmo assim. A linguagem dos gestos ali é definitivamente universal. A dança, a música, o circo, a imagem e a expressão corpórea chegam a todos, sem distinção. Os sons são produzidos ao vivo por músicos e misturam-se com os sentimentos do público que podem ser ouvidos através de exclamações, uma vez que interjeições e gargalhadas nunca são tímidas. Explicitamente altas, claras e vivas.

Depois de espalhar alegria, os saltimbancos deixam rastros de novas cores em meio ao verde, amarelo e azul. “Quidam” atravessou o mundo e esteve aqui em frente. Pode avisar: o Cirque Du Soleil chegou, encantou e partiu! Quem não fugiu com ele, terá que esperar pelo seu retorno. E o que ficou da magia é a certeza de que não há limites para o corpo e nem para a arte.




*matéria originalmente publicada no blog Lupa Digital
*fotos de divulgação

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Na terra do axé, Mariene faz samba


Em meio a uma overdose de axé em pleno verão de Salvador, um outro ritmo chama atenção. Enquanto carros na rua só tocam a música baiana que o Brasil tanto conhece, uma quantidade notável de pessoas se aglomera no Cais Dourado, casa de show no Comércio, para ouvir um som diferente. A artista responsável por isso é Mariene de Castro. Cantando samba popular essencialmente, a cantora baiana realizou mais uma edição do projeto “Santo de Casa” na última sexta-feira. Além de terem participado da noite os Filhos de Gandhy, o Cortejo Afro e Seu Jorge, Beth Carvalho também esteve presente, entretanto, ela se limitou a admirar o show.

Pouco mais de 21h40, começava a ser ouvida, do alto do camarote, a voz da cantora que aos poucos se transforma na nova cara do samba da Bahia. “Me leva na paz de Deus, me leva”. Com esse samba de Arlindo Cruz, Mariene de Castro abriu a noite e subiu ao palco para iniciar quase duas horas de show. “Eu vim pra dizer que o santo de minha casa faz milagre. Feliz ano novo. E viva a cultura popular”. Canções de seu disco “Abre Caminho” (2006), como a própria música-título, além de “Sambas de Terreiro” e “Cantigas de São Cosme e São Damião”, se misturavam com clássicos do samba tradicional, como “Falsa baiana”, “A vizinha do lado” e “Quem quiser vatapá”, além de músicas de outros estilos regionais pelos quais passeia, como o samba-canção, o maracatu e o ijexá.


A coisinha do pai
Madrinha de Mariene, a sambista Beth Carvalho contemplava o show como uma fã que não quer perder nenhum minuto do espetáculo. Com uma câmera na mão, ela registrava a apresentação e as palavras de Mariene em sua homenagem. Ao aparecer na sacada do camarote, chamada pela baiana, o público em coro pediu que cantasse, mas ela se conteve a continuar como espectadora mesmo, sem despregar os olhos do palco. “Agradeço muito a essa sambista linda, minha madrinha. Vamos cantar a música que ficou conhecida na voz dela”, e entoou “Raiz”, que também está em “Abre Caminho”, emendando com “Vou festejar” e “Coisinha do pai”. Na metade do show, Seu Jorge se juntou a Mariene para fazer uma breve participação. De óculos escuros e seu jeito peculiar de cantar, ele entoou “Minha missão”, “Eu sou o Samba”, “Samba da Minha Terra” e um improviso com “Samba pras Moças”.

Apesar de já ter uma carreira de mais de 10 anos, só há pouco tempo e a “passos de formiguinha”, como Mariene mesma costuma dizer, o Brasil passa a ter noção da importância de seu trabalho. E sobre a cantora, Seu Jorge deu sua opinião à Tribuna da Bahia: “Mariene significa renovação, não é à toa que Beth está aqui. Ela está de olho no que Mariene tem pra dizer. A imprensa de todo o país vai tomar conhecimento e vai ser inevitável parar de fingir que ela não existe.” Beth concorda: “o talento dessa cantora é inquestionável.” Quem também assistia ao show e elogiou a sambista baiana foi o presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues. “É um show muito bem preparado musicalmente. É a cara da Bahia. Costumo dizer que santo de casa faz milagre e aqui faz mesmo. Isso é importante porque milhares de pessoas de várias partes do mundo estão dançando e cantando samba-de-roda, uma música da terra”, disse.



Samba de raíz
Para relembrar o samba-de-roda de Santo Amaro, Mariene sacou um prato, que em sua mão se transformou em instrumento, e fez referência a nomes como Dona Dalva, Samba de São Braz, Samba de Nicinha e Dona Edite do Prato. “Esse ano é de Oxossi e no sincretismo religioso, São Jorge. Que ele traga tudo de bom”, pediu a cantora. Na casa lotada, ela fez o público se abraçar ao abrir rodas de ciranda quando cantou “Como Pode um Peixe Vivo Viver Fora D'água fria” e “Farinhada”.

Com sua banda, composta por dois violões, um baixo, um cavaquinho, um acordeon, quatro percussões (que se revezavam com pandeiros), além de três backing vocals, a sambista finalizou o show com os clássicos da MPB “O que é, o que é?”, “É hoje”, “Ê baiana” e “Eu não sou daqui”. Ao som de “Canção da Partida”, Mariene distribuiu rosas brancas para o público e guardou duas, uma para Beth e outra para Seu Jorge. Sua madrinha, então, deu a graça de sua voz apenas no encerramento do show, quando Mariene já estava longe dos palcos e foi até ela no camarote para encerrar como começou, ao som de: “Me leva na paz de Deus, me leva”. Lá as cantoras se encontraram e a baiana se despediu do público.

A busca pela raiz do samba-de-roda leva Mariene a uma sonoridade ímpar, fato que, culturalmente, tem grande importância não só para a Bahia, como para a identidade do Brasil por inteiro. Com o discurso de que não troca arte por dinheiro ela mantêm a riqueza poética da música e seu destaque entre os artistas baianos fica cada vez mais evidente - mesmo nadando contra a corrente por não cantar o estilo comercial predominante no Estado, o axé.

*matéria originalmente publicada em janeiro de 2009 na Tribuna da Bahia
*foto1 de divulgação e fotos 2 e 3 de Edgard de Souza/divulgação

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Portfólio Moda























* fotos de Dimas Novais registradas nas edições 2009 da Semana Iguatemi de Moda (SIM) e Barra Fashion, em Salvador/BA

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Os muitos sons de Toni Garrido

Capa do disco Todo Meu Canto, o primeiro solo do cantor

"É muito gostoso recomeçar. É muito bom ter coragem, refazer, experimentar”. Com a empolgação de quem está começando um novo momento na carreira, o cantor e compositor Toni Garrido falou, por telefone, à Tribuna da Bahia sobre as novas sonoridades que estão divertindo seu trabalho, a saída dele do Cidade Negra e a solidão de um pop star. “Todo meu Canto”, primeiro álbum solo do artista deve surpreender àqueles desavisados que pensam nele como um cantor de reggae – e só disso.

A radiofonia do Cidade Negra, sua ex-banda, está passando longe de ser a trilha de Toni Garrido neste momento. Seus caminhos agora passam por um experimentalismo e uma mistura sonora que escolheu parâmetros mais extensos do universo da black music como referência. Embora sempre tenha andado nessas vertentes, agora o objetivo é testar outros sons. Ou seja, rock, música afro, soul, funk (daqueles da velha guarda) e tantas outras influências de uma musicalidade que não tem fronteiras fazem parte de sua vida musical atual. E estes são apenas alguns dos gêneros que o permitem se divertir em um canto só seu. Mas, claro, há espaço para reggae sim. Afinal, o reggae também é black.

Co-produzido e mixado por Liminha, “Todo meu canto” é uma festa de encontros de Toni com sons que o fazem vibrar. Já na primeira música de trabalho, percebe-se o quanto ele deixa que novas influências enriqueçam sua musicalidade mas sem que precise abandonar o passado, de onde ele bebe veemente. “Me libertei” (Tony e Frank), o carro-chefe do disco, é um hit de um outro Toni, o Tornado, ícone brasileiro da funk music, da década de 70. Embora possa parecer que a música seja uma flechada no Cidade Negra, banda que deixou há quase um ano, o título não se refere a uma sensação de quem estava preso e se soltou, mas sim, a de um novo vôo para um céu aprentemente sem limites criativos. “Foram mais de 14 anos de pura felicidade. Não seria leviano, grosseiro, muito menos idiota de falar qualquer coisa ruim do tempo em que fiquei na banda. Pelo contrário, só coisas boas tenho a dizer. Foi a minha energia que mudou”, explica.

Quando questionado sobre o estigma de ser regueiro, uma surpresa: “engraçado, é a primeira vez que me perguntam isso. É o oposto do que me perguntaram a vida inteira.” Segundo ele, lhe indagavam sobre o que achava das críticas que diziam que o Cidade Negra se afastava do gênero. Mas o momento agora é outro e o estilo jamacaino é minoria entre as faixas de seu álbum. “Não. Eu não me incomodo. Amo o rótulo de regueiro. Ser regueiro é maravilhoso.”

Músicas de funk e reflexão
Durante os cinco meses de ensaios, gravações e masterizações, Toni contou com participações de antigos e novos parceiros. Entre as novidades, MC Sapão está na faixa “Fim de semana good time”, parceria que reitera para quem tinha qualquer dúvida: ele caiu no funk. De acordo com o cantor, o estilo de música que quis fazer determinou a escolha pelo MC. “Gosto muito de música eletrônica, de me jogar na pista, da batida mesmo, e ele tem isso”, comenta. Antes mesmo de ser questionado, ele se antecipa a falar sobre as polêmicas letras do funk carioca. Quando pensa no gênero, Toni se lembra de artistas como Claudinho e Buchecha e em músicas como “Rap da Felicidade”, cujo refrão, “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, transmite, de acordo com ele, boa energias. Assim também é o MC Sapão para Toni, que difere-se por trazer ao público versos de boas vibrações. “Fiz questão de gravar com ele”.

Em “Minhas lágrimas”, o maestro e violoncelista Jacques Morelenbaum cria um clima de pura harmonia com um quinteto de cordas. Na canção autoral, composta por Toni ainda na adolescência, ele reflete sobre os sentimentos de felicidade e tristeza que se contradizem rotineiramente na vida de um artista. “Tudo é tão bom quando está sendo. Tudo é tão bom quando se é e estar”, diz um dos versos. Esse “estar”, refere-se ao pop star e diz que muitas vezes a alegria mostrada ao público, diante das luzes dos holofotes, não corresponde com a solidão mais íntima, ofuscada ali, dos quartos de hotel. “É uma assunto que o Cazuza já tratou”, lembra.

Ao todo, o CD é composto por 13 faixas. Alguns dos destaques são o funk suingado de “Perfume da Nega”, a releitura de “Tudo Que Você Podia Ser” (Lô Borges e Marcio Borges), do Clube da Esquina, além da participação do rapper português Boss AC em “Rimas de saudade”, onde Toni flerta com o hip hop. Apesar desse ser o mergulho mais profundo que já deu no seu próprio gosto pessoal, ele confessa que tem pela frente muito o que transitar neste meio. “Tenho ainda alguns álbuns a gravar de black music”. Sua diversão só está começando.


*matéria originalmente publicada na edição de 04.05.2009 da Tribuna da Bahia
*fotos de Bob Wolfenson/divulgação