Encantamento
No início, eram só flores - apesar de o inverno só deixar os espinhos (agora, literalmente falando). A neve traz uma sensação de limpeza, uma sensação cinematográfica. Ao menos pra mim, que vim de uma cidade quente da muléstia, no Nordeste do Brasil.
Eram quatro e meia da madrugada de um dos últimos dias de novembro quando fui acordado por uma mensagem de celular que dizia: “Saia de casa! Está nevando!”. Ao olhar pela janela, vi o meu quintal branco, os carros brancos, as árvores brancas. Fiquei ali, uns segundos completamente enternecido. Mas isso não me bastava, queria não só ver como sentir aquilo. Ao descer as escadas de casa, outros dois brasileiros estavam saindo do quarto deles pelo mesmo motivo. Num frio de cerca de dois graus Celsius negativos saímos do calor e entramos no freezer, que era o lado de fora, para sentirmos os flocos de neve cairem sobre as nossas cabeças. Parecíamos pinto no lixo, crianças ao abrir dos presentes em noite de Natal. Foi amor à primeira vista: eu e a neve, a neve e eu!
Após esse primeiro instante congelante seguiram-se momentos de contemplamento. Mas centenas de fotos, bonecos de neve e iglus depois... veio o gelo. É que após a nevasca, período de uns dois ou três dias nevando, a neve vira gelo e, esse, faz todo pedaço de chão ficar escorregadio. Toda hora tem um caindo na rua. Eu mesmo caí cinco vezes em um único dia. Mas, calma, eu explico: um dos meus sapatos tem o solado completamente liso – impossível não andar instável com eles. Tudo bem que me senti completamente tabaréu vendo a neve, mas essa não foi a razão das quedas. A culpa foi mesmo dos sapatos.
Essa primeira nevasca que presenciei caiu em Dublin no início do inverno, período absolutamente incomum para tal ocorrência climática na ilha irlandesa. Já a segunda nevasca começou dia 20 de dezembro, um dia antes de minha viagem. Foi aí que me desintendi com ela, a neve.
Revendo meu amor à neve
Passagens de avião e de trem compradas, estava com minhas férias de Natal prontas. Iria para Barcelona e de lá para Toulose me encontrar com alguns primos meus para passarmos o Natal em uma outra cidade no sul da França. Seria uma oportunidade única de estar com eles em um momento como esse em um lugar como aquele. Seria. Não foi. Meus planos foram por neve abaixo.
Passageiros saindo do avião minutos depois de terem entrado.
Com tudo branco, centenas de aeronaves não puderam decolar
Com tudo branco, centenas de aeronaves não puderam decolar
A nevasca ficou mais forte justamente no dia 21 de dezembro, quando iria embarcar para a Espanha. Não se enxergava nada no céu a não ser um paredão branco. O saco de algodão foi rasgado e a cidade ficou inundada de neve. Não se sabia mais o que era asfalto, calçada, grama. A neve tinha chegado a quase 20 cm de profundidade. Evitando atrasos, peguei um táxi ao invés de ônibus para ir ao aeroporto. Ao chegar lá, percebi que alguns vôs estavam atrasados. Até então, nada tão anormal. Mas quando vi que voos estavam sendo cancelados, comecei a ficar preocupado. Check in feito, às 13h da tarde fico sabendo que o aeroporto de Dublin havia sido fechado até às 17h em função do mal tempo. Meu voo seria às 13h55. Aguardei até às 15h quando soube que poderia pegar minha mala e voltar para casa porque o meu voo havia sido cancelado. O que isso significava? Que eu poderia escolher um novo voo para Barcelona, em outro momento, ou pegar meu dinheiro de volta. É claro que pensei: “Sem problemas, pego um voo amanhã, 22, e está tudo certo.” Mas o que a Ryanair (companhia aérea encarregada de me transportar pela Europa) me ofereceu foi simplesmente uma passagem para o dia 30 de dezembro. Isso seria quase 2011! E eu deveria voltar a Dublin no dia 29. Ou seja, fiz o pedido de reembolso e procurei em outras companhias aéreas mas nada achei para antes do Natal. Resultado: sem voos disponíveis, fiquei em Dublin. Com neve por todos os lados e sem o Natal programado.
Por constantes vidros embaçados era possível ver os pedestres andando mais rápidos que os carros. Sobre o gelo, 40km/h é ser imprudente
Cair na neve, tudo bem. Me atrasar pra todos os compromissos, tudo bem. Esperar por quatro horas um ônibus, é... tudo bem, até vai. Mas perder meu Natal, não. A neve acabara de criar uma confusão pesada comigo!
Reconciliação
Dia 24 de dezembro, então, decidi passar a ceia natalina com amigos brasileiros e mexicanos. Antes disso, entretanto, fui dar uma volta com um amigo no centro da cidade para fotografar. Não estava nem um pouco afim de contemplar a neve que ainda caia, mas, sim, acompanhar o movimento pré-Natal. E foi aí que a tal reconciliação aconteceu, graças a um milagre de Natal. Não que eu estivesse triste, mas lamentava não estar com meus primos.
Estava caminhando na Grafton Street quando uma aglomeração me fez parar. As atenções de cerca de 100 pessoas estavam voltadas para o cantor Glen Hansard (vencedor do Oscar de melhor canção original pelo filme Once, em 2008, no qual também foi protagonista). Ele tocava, claro, canções natalinas com alguns músicos, o que fez daquele momento já bem interessante. Mas incrível mesmo foi quando Bono Vox se juntou a eles. O cantor da banda irlandesa U2 integrou-se ao círculo de músicos e, sob forte alvoroço do público, cantou canções como "So This Is Christmas" e "One". Entoamos juntos essas e algumas outras músicas: Bono, eu e umas 100 pessoas. Ganhei meu Natal! Inesquecível!!!
E eu cheguei a pensar que não iria ver uma apresentação do U2 em Dublin antes de voltar ao Brasil. Bom, ainda não vi o tal show, mas uma capela há dois metros de distância, sem microfone ou efeitos especiais, salvou meu Natal. Não lamento mais não ter viajado. Fiz as pazes com os flocos de neve. Enquanto eles caem, vou ouvindo, sem mágoas, U2 no meu iPod.
Um dos melhores vídeos gravados do momento que achei no Youtube